sábado, 14 de abril de 2007

A construção do estado ateísta

“Era uma vez um casal de ateus que tinha uma filha de seis anos. Um dia, durante uma briga,
o marido matou a mulher e depois se matou com um tiro na cabeça, tudo na frente da criança...”

Não importa como continua a história. Nós, ateus, conhecemos a sua moral. Fomos criados sob esses preconceitos. A maior parte de nós não nasceu ateísta nem teve pais ateus, ao contrário da infeliz historinha acima. Nascemos na maior nação cristã do mundo, somos batizados e sabemos o pai-nosso (com minúscula mesmo) de cor.

A moral cristã é impiedosa com os ateus. Nossa imagem não goza de status social e, invariavelmente, somos considerados estranhos e pecaminosos. É a nossa herança. Revoltadas, legiões de ateus se formam para proclamar sua aversão aos preceitos cristãos e da Igreja. O que é isso? Guerra?

A crença no além está enraizada na sociedade. Não podemos odiar aqueles que crêem. Estaremos odiando nossos pais e irmãos. “Mas como vamos combater esse preconceito com a nossa filosofia?” perguntarão alguns. Não vamos. Em vez disso, vamos encarar o problema de frente e mostrar a eles que nossa filosofia é, antes de tudo, baseada na humildade.

É difícil ser ateu. Encaramos a morte com olhos aterrorizados. A despeito de todos saberem que ela é inevitável, nós a encaramos como o fim de tudo. Não esperamos nada do além-túmulo. Não estamos indo ao encontro a deus ou a eternidade. Quando nos apaixonamos, não esperamos viver no paraíso ao lado de nossas esposas ou maridos. Tornar-se-á célebre a frase de Ann Druyan, viúva de Carl Sagan, um dos ateus mais respeitáveis dessa geração, ao falar da despedida do marido, no leito de morte: “Nenhum apelo a Deus, nenhuma esperança sobre uma vida pós-morte, nenhuma pretensão que ele e eu, que fomos inseparáveis por vinte anos, não estávamos dizendo adeus para sempre.” São palavras terríveis, mas sabemos que são verdade. Sabemos. A consciência ateísta, quando surge, nos eleva a uma percepção única. Passamos a enxergar a vida como a areia da ampulheta, que escorre inexoravelmente pela fenda. Não importa o quão correta tenha sido sua vida, no fim, a morte reina absoluta.

“Pessimista!”, gritam alguns frente a estas verdades. Já estamos acostumados. Somos ateus, percebemos nossa limitação. Somos feitos de carne e osso. Dúvidas quanto a isso? Cientistas já decifraram o código genético, não temos mais segredos. Até agora, nem sinal de um espírito. Estamos vazios.

Ora, retire do cristão a promessa da vida eterna. De que adiantaria, então, seguir os passos do Senhor? A religião está impregnada da relação oferta-procura: “Eu sou bonzinho, o Senhor me dá a vida eterna. Sou humilde, por isso viverei para sempre”. Se a promessa da vida eterna fosse arrancada do Homem, este se revoltaria contra deus. Viveríamos num universo burlesco e trágico, onde os crentes tornar-se-iam os ateus da historinha acima. Ainda assim, é difícil afirmar que a crença em Deus está associada à ignorância. Conheço pessoas bastante inteligentes de todas as religiões. A questão é mais profunda do que isso. Está ligada ao resto de instinto de sobrevivência que temos.

Nossos ancestrais hominídeos eram caçados por animais maiores. Quase sempre, a morte era sangrenta e violenta. Desenvolvemos um medo natural por ela. Tínhamos medo de muitas coisas. Tínhamos medo da escuridão quando o Sol morria no horizonte ou quando as montanhas rugiam, soltando fumaça. Divinizamos aqueles fenômenos, não podíamos explicá-los, pois éramos pouco mais que macacos enormes e desengonçados, aprendendo a explorar suas potencialidades. Chorávamos quando tínhamos que abandonar um membro doente na migração do inverno ou quando nossos velhos eram expulsos da aldeia por não servirem mais ao trabalho. Não havia enterros e, talvez, nem piedade.

Estabelecemos morada para os deuses no alto das montanhas e no fundo do mar. Quando subimos ao cume das montanhas e cruzamos o oceano em toscos barcos de junco, empurramos os deuses para outras esferas. Nossos aviões nunca atropelaram um anjo, nunca encontramos um par de chifres enterrados no quintal de casa. Arrebatados para o “céu” ou o inferno, os deuses nunca mais foram acessíveis. Hoje, são vistos apenas em igrejas, por um número seletíssimo de escolhidos que têm a sorte de ver, mas nunca a chance de registrar.

Com o surgimento da tecnologia, tornaram-se fontes de luz ou sombras, receberam explicações espirituais complicadas e teorias esotéricas profundas e claras como um bueiro. Não precisamos disso. A humanidade tem criado seus pesadelos, mas também tem realizado sonhos sociais, materiais, divinos. Cientistas, no século XX, fizeram mais pela Humanidade (esta sim, com maiúscula) que deus fez em toda sua história. Empurramos a presença de deus cada vez mais para o fundo do poço. Não rezamos mais para curar as doenças. O papel de deus diminui a olhos vistos. Aprendemos a creditar nossos problemas à nossa incompetência ou ignorância, já não existem demônios a assombrar nossos feitos.

Essa é a verdadeira essência da humildade. Sabermos nosso papel na história do desenvolvimento humano, a consciência do fim cada vez mais próximo. A semelhança entre o Homem e o peixinho que ele cria no aquário é de 98% em ordem genética. Não há divindade no nosso nascimento, não há milagres no cotidiano.

A revelação da humildade chega ao ateu quando este encara, pela primeira vez, a inigualável sensação de livrar-se da culpa da religião, do pecado natural. Não precisamos de religião para aprender a humildade. Quando encaramos nossas limitações, ela surge naturalmente. Ficamos assombrados pela nossa ignorância e pela impotência frente a todo conhecimento. Aprendemos que até o matuto tem a nos ensinar.

Talvez a religião ainda seja um mal necessário. Quando deixarmos de ser julgados pelos crentes, talvez possamos expor nossas idéias com clareza. Neste dia, a humildade poderá florescer entre os homens, fundamentada em princípios humanos, e não em fantasias envolvendo deuses e demônios. Será um tempo, então, onde todos poderão considerar-se irmãos, pois ninguém esperará mais da vida do que seu semelhante.

Ateus.net

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