terça-feira, 1 de maio de 2007

Ateísmo radical

Não é surpresa para ninguém que existem tensões entre ciência e religião. Santo Agostinho, o primeiro grande teólogo do cristianismo, afirmava que o pensamento aplicado à natureza leva ao pecado e à perdição; que, para obter a redenção, o importante é dedicar-se à adoração do eterno.

Mas a verdade é que a relação entre ciência e religião é bem mais complexa do que essa divisão superficial entre dois campos, o da razão e o do espírito. Infelizmente, volta e meia aparecem depoimentos que exacerbam exatamente essa polarização destrutiva. É o caso de três livros recentes: "O Fim da Fé" ("The End of Faith"), de Sam Harris; "Quebrando o Feitiço" ("Breaking the Spell"), de Daniel Dennett; e "A Delusão Divina" ("The God Delusion"), de Richard Dawkins. É sobre o livro de Dawkins, o mais virulento de todos os três, que escrevo hoje.

Primeiro, vamos às apresentações. Richard Dawkins é um biólogo especializado na teoria da evolução, professor em Oxford, Inglaterra, e um dos divulgadores de ciência mais famosos do mundo, com best-sellers como "O Gene Egoísta" e "O Relojoeiro Cego". Dawkins é um ateu declarado.

Até aí tudo bem; muitos cientistas o são. Para muitos, mas não todos, é importante frisar isso: a conciliação entre uma descrição científica do mundo -baseada na obtenção de informação empírica da natureza por meio de experimentos e observações quantitativas- e a aceitação de uma realidade sobrenatural, inescrutável à razão humana, é impossível. Já para alguns, o estudo da ciência serve para comprovar a beleza da criação. Imagino que Dawkins considere esses cientistas religiosos no mínimo incompetentes.

Para ele, a ciência é um clube fechado, onde só entram aqueles que seguem os preceitos do seu ateísmo, tão radical e intolerante quanto qualquer extremismo religioso. Dawkins prega a intolerância completa no que diz respeito à fé, exatamente a mesma intolerância a que se opõe.
Vejamos um de seus argumentos. Se a complexidade do mundo foi criada por uma divindade, esta deve ser necessariamente mais complexa do que tudo o que criou. Porém, segundo a teoria da evolução, isso é impossível: a complexidade é produto da evolução. A divindade criadora deveria ter sido a última e não a primeira a surgir.

A quem Dawkins dirige um argumento desses? Certamente não aos religiosos. Qualquer pessoa que conheça um mínimo de teologia sabe muito bem que a idéia fundamental das religiões é que o divino não segue as regras causais que regem o mundo material. Deuses não evoluem; são absolutos, existem fora do tempo. Ele afirma que seu alvo são os "indecisos", que não acreditam em causas sobrenaturais mas não se declaram ateus. Será esse o modo de resolver o embate entre ciência e religião?

Na minha humilde opinião, absolutamente não. A atitude belicosa e intolerante do cientista britânico só causa mais intolerância e confusão. Seu grande erro é negar a necessidade que a maioria absoluta das pessoas tem de associar uma dimensão espiritual às suas vidas.

Um erro meio parecido com o do materialismo dialético dos comunistas, em que tudo é atribuído a causas materiais. Tirar Deus das pessoas e colocar um líder fascista no seu lugar não dá certo. A ciência não deve se propor a tirar Deus das pessoas. Se é essa a sua guerra, então ela já perdeu.

O que a ciência pode fazer é proporcionar outra forma de espiritualidade, ligada ao mundo natural e não ao sobrenatural, à cativante magia da descoberta. É esse naturalismo, essa entrega à natureza e aos seus mistérios, que dá à ciência a dimensão espiritual que a torna humana.

Autor: MARCELO GLEISER é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
Fonte: Folha de São Paulo - 26/11/2006

5 comentários:

Luis disse...

Devido a uma impossibilidade matematica da pessoa ser o proprio corpo eu como pesquisador pergunto. Qual foi o trabalho cientifico que comprovou o Materialismo? Em qual laboratorio foi provado o materialismo? Qual trabalho cientifico prova que o materialismo é a realidade existencial? No mais desculpe minha desinformaçao a respeito dessas provas cientificas.

Liliana Medeiros disse...

Quando iniciei a leitura, pensei que o texto teria, integralmente, uma lógica consequente....
Mas ao ler "Muitos dos problemas que hoje nos afligem são, em grande parte, a consequência de uma sociedade inteiramente impregnada da filosofia evolucionista...[...]", fico pensando....
Acaso os autores admitem que os problemas que afligiam as pessoas na Idade Média, da escravidão aos assassinatos da Inquisição, passando pelo atraso da ciência (que não podia ainda afirmar-se materialista como é e deve ser)e consequentes problemas de saúde e elevada mortalidade, redundam da educação religiosa e obrigatoriedade da fé desde a mais tenra infância?
Como ainda hoje há mais pessoas crentes do que descrentes, e a educação religiosa antecede, no seio da família, a educação científica, na escola, por que não se atribui as mazelas da humanidade à fé e à religião?

Liliana Medeiros disse...

Quando iniciei a leitura, pensei que o texto teria, integralmente, uma lógica consequente....
Mas ao ler "Muitos dos problemas que hoje nos afligem são, em grande parte, a consequência de uma sociedade inteiramente impregnada da filosofia evolucionista...[...]", fico pensando....
Acaso os autores admitem que os problemas que afligiam as pessoas na Idade Média, da escravidão aos assassinatos da Inquisição, passando pelo atraso da ciência (que não podia ainda afirmar-se materialista como é e deve ser)e consequentes problemas de saúde e elevada mortalidade, redundam da educação religiosa e obrigatoriedade da fé desde a mais tenra infância?
Como ainda hoje há mais pessoas crentes do que descrentes, e a educação religiosa antecede, no seio da família, a educação científica, na escola, por que não se atribui as mazelas da humanidade à fé e à religião?

Saulo Gonçalves Filho disse...

Achei o texto bacana, interessante; é bom pra estimular uma boa reflexão sobre o assunto. E após algumas reflexões - inclusive a que este texto foi capaz de me provocar - está mais do que certo para mim que a religião nunca acaba. No entanto, assim como o educador escocês A.S. Neill escreveu em seu livro "Liberdade Sem Medo (Summerhill)", acredito que se instaurará uma nova religião, uma religião que não diga ao homem que ele nasceu do pecado e que merece a salvação, embora seja indigno dela. Esta nova religião, ainda segundo Neill, dirá às pessoas que elas devem ser felizes pelos seus próprios meios, estabelecendo, assim, uma relação de verdadeiro amor e gratidão a Deus.

Saulo Gonçalves Filho disse...

Complementando (e talvez um pouco de contradição):
No entanto, esta nova religião só seria possível existir com a queda da religião vigente - no caso específico, o cristianismo. Mesmo que ainda seja uma adaptação da religião que vigora, trata-se de uma queda, não da própria religião em si, mas de velhos conceitos milenares que ela sustenta. E para que ocorra essa ruptura, mais ou menos drástica, é preciso que haja contestação, ou mesmo negação, do paradigma. E quando alguém se propõe a tal vanguarda, é muito comum que encontre pela frente fortes resistências.