quinta-feira, 17 de maio de 2007

A consciência religiosa

Em seus trabalhos, Ludwig Feuerbach se preocupa em grande parte com o fenômeno religioso; ele faz parte da tradição dos discípulos de Hegel que se dedicaram à crítica da religião, mas marcado por uma inovação: seu materialismo. Feuerbach crê que na religião há uma carência da consciência de si do homem. Essa carência é a base da religião, onde o homem (religioso) aliena a sua essência; essa fase religiosa corresponde a uma “essência infantil da humanidade”, já que este homem (infantil) adora sua própria essência sem reconhecê-la como tal. Feuerbach acrescenta que entre o humano e o divino não há uma oposição de fato, real, mas sim ilusória. A contradição fundamental está no homem, porque não há uma essência religiosa. A religião é uma abstração das limitações da vida humana, corporal. Não há qualidades em si na vida divina.
Esse homem infantil em Feuerbach é um ser que teme sua finitude e as limitações (naturais) que sofre todo ser humano. O homem possui uma essência “infinitamente diversa, infinitamente determinável, mas exatamente por isso sensorial” (Feuerbach, 1988, p. 65). O homem como homem sensorial, pleno de sentidos, é um ser rico em determinações; o engano do homem religioso é criar um ser espiritual e, portanto, abstrato. Esse homem religioso teme ser um homem finito, determinado. O que ele reconhece no ser divino são as qualidades de sua própria essência (que Feuerbach denomina “qualidade essencial do próprio homem”), criando uma “contemplação essencial” que o anima e o determina (de fora).
O mistério dos vários atributos divinos encontra-se no próprio homem, em sua essência infinitamente diversa, determinável e sensorial. É através dos sentidos que o ser humano é concebido como ser infinito, pleno de determinações. Dessa forma, podemos conceber a religião como uma cisão no homem: o ser divino é aquilo que o homem não é. Essa cisão entre o ser divino e o homem representa uma cisão do homem com sua própria essência (oculta). O homem expressa essa essência (oculta) através da religião; por meio dela, podemos encontrar um conteúdo (humano) objetivado. Esta última idéia é importante para compreendermos o modo de tratamento de Feuerbach em torno do fenômeno religioso. Suas análises da religião são entrecortadas de comentários sobre esse conteúdo objetivado, ou melhor, mostra que o conteúdo desses crenças pode ser explicado de forma racional:

O culto aos animais e à natureza em geral não nos mostra somente o estágio prático da cultura de um povo, mas também sua natureza teorética, seu estágio espiritual em geral; porque, enquanto o homem adora animais e plantas, não é ainda um homem com nós, identifica-se pois com os animais e as plantas, estes são para eles ora seres humanos, ora sobre-humanos (Feuerbach, 1989, p. 48).

Também n’A essência do cristianismo, encontramos uma série de exemplos. Um deles, muito curioso, é quando Feuerbach analisa o papel simbólico da água, do vinho e do pão no cristianismo. A água é um produto natural indispensável ao homem; o vinho e o pão são produtos naturais transformados pelo homem, mas também são importantes para sua sobrevivência. Assim, ele comenta, “adoramos na água a pura energia natural, (...) no vinho e pão a energia sobrenatural do espírito, da consciência, do homem” (Feuerbach, 1988, p. 315). A análise antropológica desse conteúdo religioso, neste exemplo, indica que na água expressamos nossa gratidão à natureza; no pão e no vinho nossa gratidão ao homem. E Feuerbach vai além dessa constatação: na adoração do pão e do vinho, concluímos que “o homem é o Deus e o redentor do homem” (Idem). Aqui, já estamos às portas do marxismo, pois o homem é concebido como fundamento natural e essencialmente humano; o homem é um produto do próprio homem. Nota-se, nesta passagem, que o marxismo aprofunda essa definição feuerbachiana, sem negar a inovação dessa abertura (humanista).
Das reflexões de Feuerbach sobre a religião, pode-se apreender o fenômeno ideológico. Quando se toma essa perspectiva da religião, Deus torna-se uma realidade inquestionável; para a religião, Deus é o “pai real” e o “amor real”, algo real, vivo e pessoal. Nele, podemos identificar “qualidades vivas”. Essa afirmação da entidade divina corresponde a uma negação do homem: a religião se afirma pela abstração do homem e do mundo.. Mas o fundamento desse processo de abstração permanece, pois a religião só pode abstrair-se das limitações humanas, não de sua essência: a religião “deve acolher novamente nesta abstração e negação aquilo de que ela se abstrai ou crê se abstrair” (Feuerbach, 1988, p. 69).
Assim, no mundo religioso temos um processo fundamental: objetivação/abstração. O segredo da religião é que o homem objetiva sua essência e se faz objeto deste ser objetivado. O ente divino se transforma em sujeito, o homem em objeto. Eis, então, a contradição que se verifica: “Ao ser o homem aparentemente rebaixado ao mais profundo abismo, é na verdade levado às alturas” (Ibid., p. 71). Assim como aparece a divisão objetivação/abstração, Feuerbach também inclui os termos subjetivo/objetivo. A essência do homem representa sua dimensão subjetiva:

Quanto mais subjetivo, quanto mais humano for o Deus, tanto mais despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser exteriorizado, mas do qual ele se apropria novamente (Ibid., p. 72).

A infantilidade do homem está em fundamentar seu caráter humano em Deus; é o que qualifica de “se apropriar novamente”. O homem depende do ser divino para se humanizar. Ainda nesta dimensão subjetiva, Feuerbach trabalha com as faculdades da imaginação, da razão e da sensibilidade (sensorial). Para o homem religioso, o ser divino é algo que ele crê, algo que está entre uma existência sensorial e uma existência pensada (razão), é um ser sensorial onde faltam todas as determinações da sensorialidade. O ser divino não pode se situar na existência empírica (real) que os sentidos provam; Deus faz parte de uma existência formal, exterior, independente das intenções humanas. Essa dimensão formal é a imaginação. Fora e além dos sentidos está a imaginação: é a fantasia que soluciona a contradição entre o sensorial e o não-sensorial, fantasia que funciona como anteparo à dura realidade do ateísmo. É por isso que Feuerbach qualifica esse homem religioso de infantil, pois ele vive ainda pela dimensão da fantasia e da imaginação.
Pela imaginação a existência adquire “efeitos sensoriais”, a existência se afirma como um poder. Mas se o “fogo da imaginação religiosa” for apagado juntamente com os efeitos sensoriais, então a existência tornar-se vazia, plena de contradições: é este estágio que teme o homem infantil. Para que o homem se humanize e supere este estado infantil é preciso que compreenda sua própria natureza (oculta). O homem é determinado por sua essência, só que esta essência lhe tem sido imposta do exterior como essência alienada. A real essência do homem lhe é desconhecida, pois está projetada fora de si. No fundo, o homem se contempla fora de si, personifica-se (através da imaginação) no ser divino.
É nesse sentido que Feuerbach pensa a dimensão subjetiva, como uma dimensão não resolvida pelo homem religioso. A faculdade da imaginação atua no mundo subjetivo, criando um suposto mundo objetivo. Cria-se, dessa forma, uma verdade da imaginação, produzindo efeitos que não são reais. O trabalho ideológico que se opera na religião é a produção de efeitos de coisas irreais: a produção da imaginação é concebida como realidade. O homem (na religião) se pensa como objeto de um objeto: perde-se, nesse processo ideológico, o fundamento e o sujeito real. A ideologia é um reflexo que se olha em outro reflexo, um efeito que precisa de outro efeito. Daí porque a ideologia não tem um fundamento em si; trata-se de um movimento (ilusório) da abstração.
Como podemos notar, a apreensão da ideologia no fenômeno religioso aparece com toda clareza em Feuerbach. A ideologia promove essa inversão da ordem real das coisas: o homem desnaturaliza-se na religião, mas o fenômeno ideológico faz crer que ele só é humano pela religião. Nesta, a causa idealizada torna-se uma causa real e a idéia se converte em realidade. Esse raciocínio aparece em Feuerbach: “O homem sacrifica o homem a Deus” (Ibid., p. 311). A crítica ideológica da religião anseia uma nova consciência humana, uma vida mais real e sensorial. A crítica à religião representa, de fato, uma crítica ao poder da ilusão e da ideologia. Não é uma categoria vaga, indiferente, mas atua na humanidade de forma nociva; a ilusão (da religião) “mata no homem tanto a energia da vida real quanto o senso de verdade e virtude”. Todo conteúdo humano (o amor, a virtude, etc.) que se realiza através da religião é aparente e ilusório. Feuerbach propõe uma inversão nesse estado de coisas:

(...) elevemos à questão principal, à causa o que para ela é o subordinado, a questão secundária, a condição; então teremos destruído a ilusão e teremos a luz não obscurecida da verdade diante dos nossos olhos (Ibid., p. 313).

O que Feuerbach propõe para se destruir essa ilusão é a inversão do processo ideológico; propõe a tomada de consciência da realidade humana. Nota-se nessa postura feuerbachiana que a reação restringe-se ao indivíduo, à pessoa isolada, à consciência humana (como postura crítica). Ele crê que o homem pode se transformar através de uma postura crítica, só pela transformação da consciência. Percebe-se, assim, que o humanismo de Feuerbach é um humanismo antropocêntrico, centrado no homem (isolado), na consciência.

A concepção de homem em Ludwig Feuerbach

2 comentários:

Catellius disse...

Grande Adriano,

Gostaria de ouvir sua opinião sobre meu último post: "Adiós Carismáticos?", no http://pugnacitas.blogspot.com
Gostei muito do que vi por aqui. voltarei depois, com mais calma!
Abraços,
Catellius

Unknown disse...

Este blog ainda esta no ar?Mande uma resposta, pois somente agora tomei conhecimento e achei muito importante.