quinta-feira, 19 de abril de 2007

O fenômeno do ateísmo no mundo de hoje

Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho

O objetivo deste texto é fazer uma análise dos argumentos mais ponderáveis até hoje apresentados por aqueles que não admitem a existência de um Ser Supremo e diagnosticar a situação real do fenômeno antiteísta no cenário de nossos dias. Para bem se apreender o problema, cumpre uma conceituação inicial. Em seguida é feita uma colocação das principais correntes atéias contemporâneas, buscando-se textos irretorquíveis dos próprios fatores, o posicionamento deles. As concepções científicas, que querem ser uma base sólida para justificar o antiteísmo, são enfocadas no que têm de mais digno de nota. Nem se poderia omitir o atual pensamento da Igreja perante a difusão atéia. As conclusões dão um balanço global a tudo que foi exposto e, no final, a assertiva integralizadora que flui de quanto foi refletido, após esta incursão nas províncias dos sem-Deus.

Definição de ateu
O vocábulo ateu significa uma privação ou uma negação da idéia de Deus. Em si, portanto, este conceito expressa um desconhecimento ou uma postura de não aceitação de um Primeiro Princípio de tudo. Quem assevera que Deus não existe, pode simplesmente assumir esta atitude e dela haurir suas conseqüências, ou partir daí para renhir contra um Criador do universo. Assim, o ateu é aquele que ignora, nega ou combate a Deus. Aí estão três facetas do ateísmo. O ateu perfeito, em toda a accepção da palavra, não acredita que haja um Ente que transcende a ordem empírica.

A ignorância de Deus
A ignorância de Deus é um fato transitório. Os mais avançados estudos antropológicos não detectaram ainda pessoas que tenham passado pela vida sem nunca haverem tido uma noção de Deus. Homens destituídos de toda idéia sobrenatural, que laborassem num completo agnosticismo. É que a natureza toda é ordenada pela inteligência divina. Seria uma anormalidade, um fato patológico, um caso de total omissão de um vislumbre desta questão que se põe necessariamente a quem tem o uso da razão, mesmo que esteja fora de qualquer convívio comunitário. Não pode se dar uma incognoscibilidade radical de Deus. Houve etnólogos que pensaram ter descoberto uma tribo primitiva da Polinésia, vivendo sem contato com o mundo, que parecia inteiramente atéia. Um juízo correto sobre as estruturas psíquicas de uma povoação mal conhecida, torna-se impossível. Além disto, uma única exceção não é prova válida para a tese que quisesse contestar a conaturalidade da religião no pensar racional. Há uma expressão profundamente feliz de Plutarco: “Se saís pelo mundo, encontrareis povos e cidades sem muralhas, sem cultura, sem reis, sem casas, sem riquezas, sem dinheiro, sem teatros nem lugares para exercícios físicos. O homem, porém, nunca viu, nem verá cidade alguma sem templos e deuses, ou que não faça uso da oração, dos juramentos, das adivinhações e dos sacrifícios para a obtenção de bênçãos e benefícios e o afastamento de maldições e calamidades”.1 Platão ajunta seu testemunho: “Todos os homens, que tenham algum grau de sensatez, no começo de toda impresa, grande ou pequena, invocam a Deus”.2 Além disto, agrupamentos humanos sem nenhuma crença, não os há. Quatrefages assim se expressa: “Obrigado a passar em revista todas as raças humanas, procurei o ateísmo entre as mais degradadas e as mais elevadas. Não o encontrei em lugar nenhum a não ser no estado individual ... O ateísmo só existe em estado errático. Tal o resultado de uma investigação que posso chamar conscienciosa e que comecei muito antes de subir à cátedra de antropologia”.3 Categórico foi Tiele: “Nunca se encontrou tribo ou nação que não acreditasse em seres superiores; os viajantes que disseram o contrário foram depois contraditados pelos fatos”.4

Não saber que Deus existe é, pois, algo que acontece temporariamente. Não se depara, porém, isto numa comunidade, por mais restrita que seja, numa simples família. À idéia de Deus todos os homens chegam, mas podem apartá-la, opor-se a ela.

A negação e combate da idéia de Deus
A negação é uma rejeição de Deus sem um sucedâneo. Deixa um vazio e coincide com a indiferença prática. Age-se como se Ele fosse desnecessário e o silêncio pedagógico de Deus que respeita a liberdade do homem, não sendo captado, acentua este comportamento.

Há, porém, os que militam desesperadamente contra Deus. Preconiza-se uma nova humanidade indene de um mito pernicioso. Interpretação cósmica que só será viável quando se banir peremptoriamente todo resquício do sagrado. Este modo de pensar agressivo caracteriza um ateísmo positivo e absoluto, pois com o afastamento irreversível de Deus, estabelecem-se em seu lugar forças materiais que explicam o mundo visível. Há, além do mais, uma inversão fantástica observada por Claude Bruaire: “do desejo de Deus” se passa “ao desejo de ser Deus”.5 Aliás, Lichtenberg profetizou: “Nós mesmos seremos como Deus”.6

Os pseudo-ateus
Saliente-se que existem ainda os pseudo-ateus. Estes não negam nem batalham contra a idéia de Deus, mas deploram uma visão inadequada e falsa do Criador ou determinados aspectos culturais. São, equivocadamente, denominados ateus. É o caso de Sócrates pelo fato de repelir as imagens grosseiras e ridículas que seus concidadãos veneravam. Os próprios cristãos foram chamados de ateus por não oferecerem incenso aos ídolos. São Justino, no século II, registrou a cominação da época: “Morte aos ateus, morte aos sem-Deus”.7 Sustentava ele: “Chamam-nos ateus. Sim, por certo, confessamos sê-lo. Somos ateus de todos os pretensos deuses”.8 Muitos daqueles que em nossos dias são ditos inimigos de Deus, o são por criticarem a vivência dos homens nos tempos modernos. Eles não repudiam a Deus, mas algo diverso. São modos de ver errôneos que tais pessoas não admitem. Desejam despojar Deus de figurações estranhas, de deformações antropomórficas. Um Deus conhecido como um Homem Bonachão, adorado de maneira sentimental ou infantil. Um Deus simbolizado como o Grande Banqueiro, do qual se lhe presta. Deus de traços terrenos: ancião de longas barbas, braços e mãos poderosos. Um Deus desumano, vingativo, tirânico, prestes a esmagar o homem. Descrição errada de um deus meteorológico, de um deus da conveniência e da ordem legal, jansenista ou polícia imanente, de um deus do sentimentalismo vão, de um deus vago diretor geral, de um deus projeção psicológica, de um deus dos messianismos fortuitos, das euforias passageiras. Deus a-histórico, a-cósmico, a-humano, isto é, lá de fora, longínquo. Assim O viu Aristóteles que ensinou ser Deus apenas causa formal do mundo, “que ele move por amor como bem supremo para o qual tende o universo ... movet ut amatum (Met. XII,7). No seu isolamento ignora o mundo e tudo quanto nele se passa! Deus sublunaria non curat”.9

Os “teólogos da morte de Deus”
É preciso, finalmente, ressaltar os “Teólogos da morte de Deus”. Trata-se de cristãos separados da Igreja Católica10. Para eles o desenvolvimento da Ciência ocorre no curso de uma pugna sem tréguas contra a religião, sem propagandistas e defensores. Assim, o cientista e o crente são contrários irreconciliáveis. Este grupo não nasceu espontaneamente. As contestações que faz e as inquisições que põe, não são compreensíveis sem referência às elaborações dos teólogos não-católicos da geração precedente, três alemães sobretudo. Esforços de Rudolf Butmann para “demitizar”11 a fé cristã, de Paul Tillich para “conciliar cultura e religião” e os de Dietrich Bonhoeffer para liberar a mensagem do Evangelho de um “a priori religioso”. Este último é tido pelos protestantes como o precursor desta renovação. Sua vida, suas cartas de prisão são um apelo ao engajamento e à autenticidade. Uma das característica dos “Teólogo da morte de Deus” é um modo de se expressar que faz descer a teologia de seus cimos severos. Para eles o Deus vivo da Bíblia está morto na cultura atual. São teólogos que declaram que o Deus do cristianismo, visualizado pelas Igrejas cristãs, não fala mais ao homem do século XX. Não existe mais para ele, não lhe faz falta. Morreu. É necessário uma outra linguagem, um outro equipamento ou aparelhamento mental. As categorias bíblicas não se coadunam com o cogitar de nossa geração e nelas Deus não é revelado para quem vive neste ocaso de milênio. Um novo discurso teológico se impõe a partir do que toca essencialmente o homem dilemático desta quadra histórica. É o que, por exemplo, também pensa John A. T. Robinson12 Ele propõe que a partida se dê da crítica atéia para uma adesão a Deus. Aparta os resíduos de uma mitologia ultrapassada. Percebe-se uma idiossincrasia para com a analogia. Não se pode, porém, abstrair o valor desta para se falar de Deus. Charles Bent observa: “A linguagem humana que se refere a Deus é extremamente fraca e deficiente, mas é o único meio de que o homem dispõe e, portanto, deve servir-se dele o melhor que pode”13. Entretanto, não obstante as falhas, as colocações dos “Teólogos da morte de Deus” são um convite a que se depure a exposição dogmática, tornando-a mais esclarecida. Como nota, porém, o mesmo autor, “a proposição híbrida do ateísmo cristão continua essencialmente não convincente tanto para o cristão como para o ateu”14.

O ateísmo marxista
Toma-se, por vezes, ateu como sinônimo de marxista ou vice-versa. Todo marxista é ateu, mas nem todo ateu é marxista. Por isto os demais ateus, que se opõem, política e socialmente aos adeptos de Marx, até renunciam, em certas circunstâncias, a agressividade com relação à religião. Chegam mesmo a transigir com ela, na esperança de terem um aliado na oposição aos discípulos de Marx. Além disto, o marxismo não se contenta em litigar contra as religiões. Ele quer exercer na vida pública e individual o papel tirado às Igrejas.

É precisamente sua constituição atéia que explica a virulência do ateísmo do marxismo comunista. Este quer transformar o homem todo. Julga-se depositário da exclusiva e total verdade. Torna-se, assim, um ferrenho opositor a qualquer tipo de teologia. Observa-se que grande é a importância do marxismo no cenário ateu. Note-se, em primeiro lugar, que o ateísmo não lhe é um caráter acidental e contingente. Ele se insere numa visão geral do cosmo. Deus é positivamente banido. Há uma incompatibilidade filosófica e psicológica entre esta ideologia e um Criador. Nunca se conseguiu, apesar das ingênuas tentativas de muitos, a conciliação existencial entre marxismo e o sobrenatural. Além do mais, desde 1841, Karl Marx fez profissão do mais indecomponível ateísmo. “Eu tenho ódio a todos os deuses!”15, exclamava ele, antes de descobrir sua vocação de reformador da sociedade. Reconhecia uma deidade: a “consciência humana”. A recusa ao cristianismo em Marx, como em Freud, se faz em nome da consciência, mas há um repúdio passional neste modo de ser. Interessantes as reações de ambos. Um e outro, judeu no seio do mundo que se diz cristão, mas no qual se sabe e se percebe estrangeiro. Marx humilhado pela conversão oportunista de seu pai, também judeu, para o luteranismo, por uma reação íntima se identifica com a superestrutura tendenciosa de certas evoluções econômicas. Espera, pois, que abolindo o capitalismo, a revolução proletária trará simultaneamente um golpe de morte ao cristianismo. O ateísmo marxista, progressivamente, de modo mais explícito, tomará uma feição partidária e se pretenderá dotado de um arcabouço perfeito. Marx é seguidor de Hegel, Strauss, Bauer e, sobretudo, de Feuerbach. Neste ele haure o leit motiv de seu humanismo. Estes pensadores o ajudarão a motivar e formular racionalmente sua revolta contra os deuses, mormente, contra o Deus bíblico. Indignação, cujas raízes se ocultam além do subconsciente do filho de um judeu liberal, que se fez cristão por oportunismo na convicção falaciosa de se arrancar, assim, à condição de judeu.

As circunstâncias, além disto, são a explicação do surto ateu, principalmente, de Feuerbach. A Prússia de após guerras napoleônicas nos mostra uma conjuntura na qual as elites suportavam dificilmente o obscurantismo da contra-revolução e, conseqüentemente, exaltando a Revolução Francesa, símbolo da liberdade e das luzes. Dado que os tiranos se reclamavam o “direito divino”, é todo o divino que era mister abater para livrar o homem da tirania. Libertar o homem de Deus, que é uma criação ilusória do espírito humano, é o novo objetivo da humanidade. Feuerbach é o primeiro a usar a expressão que se difundiria rapidamente: “alienação religiosa”. Esta fizera surgir o Deus cristão e os outros deuses. Agora o homem está adulto para colocar fim à transferência e recuperar a totalidade de seu ser. Proclama ele na obra “A essência do cristianismo”: “Se a divindade de natureza é alicerce de todas as religiões, a divindade do homem é o seu escopo final... A grande reviravolta da história será o momento em que o homem se conscientizar de que o único Deus do homem é o homem mesmo: “Homo homini Deus”.16 Mondin sintetizou magistralmente a idéia de Ludwig Feuerbach: “A origem da idéia de Deus tem o caráter de hipostatização: o homem projeta as qualidades positivas que possui em si numa pessoa divina e dela faz uma realidade subsistente, perante a qual sente-se esmagado como um nada”.17 Deus é, assim, uma evasão, uma fuga, uma tela que esconde o homem. Entorpece suas possibilidades. Feuerbach firma-se em Hegel, no qual buscou a palavra alienação. O homem reflete num ser imaginável tudo que possui de melhor e cria um ente infinitamente bom, justo, belo, poderoso ... No instante em que o homem retomar o que transferir para Deus ele será o seu próprio Deus.

Eis aí uma tese basilar do marxismo e subjacente aos ateístas posteriores.

Marx viu no dizer feuerbachiano a base sólida para um genuíno humanismo. Muitas de suas idéias são o eco do que leu em Feuerbach. Após ler o livro deste, ele sustentava: “o homem é que faz a religião e a religião o homem”.18 Ele se propõe vivificar pelo método dialético de Hegel a filosofia materialista e humanista de Feuerbach. A religião é para ele uma alucinação patológica. G. Siewerth patenteia que para Marx, “a fé em Deus é, pois, ao mesmo tempo, uma divisão da consciência e uma ilusão. Urge, portanto, desmascarar esta ilusão a fim de restituir ao homem a dignidade perdida da sua interioridade infinita”.19

Karl Marx tende, ab ovo, ao antitranscendentalismo. É o materialismo prático. Escreve ele: “A luta contra a religião implica a luta contra o mundo do qual a religião é o aroma espiritual”.20 Como verdadeiro discípulo de Feuerbach, Marx conclui que a adesão a Deus tira ao homem a consciência de sua grandeza: é uma alienação. Eis seu asserto contundente: “Mais o homem coloca realidade em Deus e tanto menos resta de si mesmo”.21 A ação de um Deus Supremo impede sua independência total. Sua emancipação exige “a priori” a morte de Deus. É exatamente o trabalho que permite ao homem construir-se enquanto homem.

Fica claro, pois, que o ateísmo não é acidental ao marxismo, impossível ser um “bom” marxista, permanecendo crente. Marx é taxativo: “O ateísmo é uma negação a Deus e por esta negação coloca a existência humana”.22 Entre a razão e a fé o conflito é peremptório. Diria depois Lénine: “O marxismo é o materialismo. Por este título ele é tão implacavelmente hostil à religião, quanto o materialismo dos enciclopedistas do século XVIII ou o materialismo de Feuerbach”.23 Prossegue ele: “Devemos combater a religião. Isto é o a-b-c de todo o materialismo e, portanto, do marxismo”.24 Não se trata de um conselho facultativo. Fala categoricamente: “Nossa propaganda compreende necessariamente a do ateísmo”.25

É a própria religião, sob a forma mais pura, que o marxismo considera como alheação perigosa da qüididade do homem. O comunismo, que é o herdeiro mais fiel de Karl Marx, se revela, pois, em lógica conseqüência, intransigente neste ponto. Lénine assim se manifestou também, em 1905: “A religião é uma espécie de mau vodka espiritual no qual os escravos do Capital afogam seu ser humano e suas reivindicações para com uma existência ainda pouco digna do homem”.26

Marxismo e ateísmo não podem ser dissociados. O ateísmo é intrínseco ao marxismo. É-lhe medular, parte integrante. O ateísmo não é em Marx uma superestrutura. A própria consciência que o homem tem de si exclui, completamente, a possibilidade de Deus.

Daí ser um erro primário querer abstrair dos escritos de Marx o ateísmo. É desestruturá-los. Não há meio termo. Há uma contestação terminante à Transcendência.

Ateísmo racionalista
O racionalismo exalta a razão a ponto de recusar toda realidade independente da consciência. Todos os ateus crêem que sua descrença é racional. Entretanto, há uma distinção muito nítida entre os ateísmos do tipo marxista, existencialista ou nietzschiano e o ateísmo racionalista propriamente dito. Os marxistas, os existencialistas se dizem ateus, não tanto em nome da verdade, como em salvaguarda de certos valores que, segundo eles, estariam em xeque, dado que a religião tira o homem do real. O racionalista, pelo contrário, se proclama ateu, porque ele crê ter chegado à certeza de que religião não passa de uma falsidade. É a forma mais típica de descrença. Eclosão peculiar de um sentimento vivo do antagonismo definitivo entre a fé e a ciência. Isto se iniciou no século XVIII e se prolongou além do século XIX. Nos dias atuais, os estudos filosóficos e científicos, escoimados de certos preconceitos, levam diretamente à verdade. Além disto, como bem sintetiza Ignace Lepp, “ao longo dos últimos decênios a ciência conheceu inúmeros e dolorosos reveses. Ela não foi capaz de manter suas promessas ¾ pelo menos as de seus protagonistas ¾ de dar aos homens as razões suficientes de viver e de lhes assegurar sua felicidade total. Basta que se pense nas angústias de um Einstein e de um Oppenheimer diante das ameaças que constitui para a humanidade a descoberta feita, por eles mesmos e seus discípulos, da energia atômica”.27

Há, entretanto, ainda ateus racionalistas. Eles exercem influxo que não se pode subestimar entre as grandes correntes filosóficas deste tempo. Não são, porém, tão dogmáticos quanto os do século XIX. O caráter deste ateísmo racionalista é antes um agnosticismo. Contenta-se em falar que não há demonstração da existência de Deus, sem asseverar a não existência de Deus e de toda ordem transcendental. Não há mais a dicotomia entre o oratório e o laboratório. Aliás, Pio XII atestou: “A verdadeira Ciência, mais ela progride, de cada porta que abre a Ciência”.28

O ateísmo existencialista
O existencialismo ateu coloca a lume o porvir tétrico do homem, constrangido a edificar na perplexidade um futuro incerto. A transcendência objetiva ultramundana, a mais válida, porque nos leva a Deus, não é admitida senão por poucos existencialistas. Sartre a contesta explicitamente, dizendo que cada homem é uma existência “jetée-lá” neste mundo, como estreme contingência, sem causa, nem razão de ser. Isto é uma absurdidade, mas Deus também é uma absurdidez, isto é, inexplicável.

Vasto é o prestígio de Sartre, por isto se analisará o seu ateísmo.

Sartre

Jean Paul Sartre, escritor, dramaturgo francês, é um filósofo mais conhecido pela sua obra literária. Daí a sua ascendência. A negação de Deus é a essência mesma de seu sistema. Para Sartre, que Deus não exista é de tal evidência, que não há utilidade de examinar e de refutar o que tradicionalmente sobre Ele se inculcou. Deixou exarada esta sentença: “O existencialismo não é de modo algum um ateísmo no sentido de que se esforça por demonstrar que Deus não existe. Ele declara antes: ainda que Deus existisse, em nada se alteraria a questão; esse é o nosso ponto de vista”.29 O ateísmo não é tema de discussão. É um pressuposto, um ponto de partida, um dado primeiro. Herdeiro de uma herança atéia já constituída, Sartre se meteu a desembaraçar os ateísmos precedentes de qualquer resquício de religiosidade. Eis suas palavras textuais: “O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem, ou como diz Heidegger, a realidade humana”.30 Sartre é uma versão francesa da fenomenologia e do existencialismo alemão. Ele é o Heidegger francês, embora tenha sofrido também funda influição de Husserl. Deus não é para ele senão uma miragem do psiquismo. O homem fiando-se em Deus, se perde. Da liberdade se deduz que Deus não existe. O existencialismo é um testemunho de clarividência e coragem, segundo ele. Além disto, Sartre intenta demonstrar, através de suas representações românticas teatrais, que a hipótese Deus não é de nenhuma maneira requerida para a compreensão e a realização da existência, tanto individual quanto coletiva. Portanto, que Deus exista, tanto não acrescenta nada à condição concreta do homem. Em O Diabo e o Bom Deus, ele relata, entretanto, mais radicalmente a antinomia Deus-homem: “se Deus existe, o homem é um nada; se o homem existe, Deus não existe”,31 é o que ele coloca nos lábios de Goetz, dilemática personagem que quer estruturar-se na insurreição contra Deus. Este deve ser negado em nome do livre arbítrio. Deus é um obstáculo à promoção humana. A não aceitação de Deus se torna o fulcro necessário da afirmação do homem. Há que se escolher entre Deus e o homem. Não há meio termo. O homem, doutrina Sartre, só se libertará na negação do Absurdo. É que o homem não seria livre, se houvera uma ordem universal dos valores absolutos.

Para se entender o ateísmo de Sartre é preciso fixar que na ontologia sartreana é de suma relevância a distinção entre o ser-em-se (en-soi) e o ser-para-si (pour-soi). O para-si designa o homem enquanto é consciência e liberdade. Por isto o para-si é o ser afetado pelo nada (néant), portanto, entitativamente em estado de carência. Ao contrário o em-si, sem consciência e liberdade, está fora da órbita no nada. O ser é o que é, sem qualquer dualidade, ou seja, “a densidade do ser-em-si (en-soi) é infinita”.32 Há uma “primazia ontológica do en-soi sobre o pour-soi”.33 O para-si é uma desintegração, um movimento de fuga, pura relação impessoal. O em-si se revela totalmente opaco, fechado nele mesmo, sem causa, sem razão de ser, privado de toda dimensão interior, de abertura, de vida, desprovido de dinamismo e de finalidade. O para-si, no momento em que encerra o nada, não pode coincidir com o em-si que exclui o nada. Sartre define assim o universo como o ser-em-si, concebendo-o como eterno, desprovido de lógica e de justificação. O ser-em-si é um objeto não criado por Deus. É algo que a consciência tem por realidade. O fenômeno não é uma cortina lançada diante da substância. É o que existe, enquanto ele se manifesta. É incognoscível. Se ele não existisse senão em si mesmo, questões não se poriam, pelo fato de que não haveria ninguém para levantá-las. Mas, não se sabe nem quando, nem como, nem por que, a realidade humana fez a sua entrada no universo opaco do em-si. Sartre, chamado esta realidade humana, caracterizada pela consciência e pela liberdade, de para-si, sendo este lucidez absoluta, o coloca, forçosamente nos antípodas do em-si. Ser-em-si e ser-para-si apresentam traços inteiramente opostos. Um significa plenitude e opacidade; o outro, abertura e transparência. O para-si e o em-si se contradizem mutuamente. Sua fusão é irrealizável. Assim, para ele, a idéia de Deus é contraditória. Não se pode conceber Deus como um simples em-si, porque lhe faltaria a consciência e a liberdade. Por outra, não se pode considerar Deus um para-si apenas, porque então careceria da plenitude do ser. Há para Sartre irreduzível oposição entre o em-si e o para-si, isto é, impossibilidade que haveria para algo não causado simples e imutável, sempre idêntico a si mesmo (en-soi), de ser para-si, porque a consciência faz com que alguém seja o que não é, e não seja o que é e, assim, Deus que deveria ser em-si-para-si é uma contradição in terminis, uma quimera, um mito. Born-heim assim diagnosticou o resultado desta diversificação sartreana entre o em-si e o para-si: “se Deus fosse consciênte do outro que não Ele. Logo, não caberia dotar Deus de consciência e, nesse caso, só lhe restaria ser um objeto absoluto, o que é evidentemente absurdo: fiquemos com o absurdo da pedra, do em-si”.34 Desta forma, o ateísmo está no coração do sistema de Sartre. A cisão cabal entre o para-si e o em-si conduz à crise a intersubjetividade. Donde, ontologicamente, segundo ele, o homem é uma fuga do ser. A realidade humana é existência pura. A consciência procura se conquistar, possuir-se absolutamente, ser ela mesma, eliminar o nada que a constitui. Ela aspira à totalidade acabada, à densidade infinda do ser em si completo, que se fundamentaria em si mesmo. Esta meta definitiva ela quereria atingi-lo continuando existir por si, isto é, numa ascensão ininterrupta. Toda a luta humana, porém, é uma “paixão inútil”, um sofrimento vão. O homem sabe que a morte é irremediável. Enquanto consciência e liberdade desaparecerá um dia, sem deixar rastros. Toda a trama da historia da humanidade não é senão uma batalha para a abolição de sua radical contingência, sua total finitude. Daí o aparecimento da idéia de algo sólido, eterno, infinito. O homem é, pois, projeto de si ou projeto de Deus. Deus não é outra coisa que a visão fantástica e enganosa da ambição inatingível do homem. Deus é o álibi dos que têm medo da natureza e da vida. O homem e o mundo espargem atrás de si a sombra de Deus, a imaginária cicatriz de uma ferida, que é desastrosa. Um Deus transcendente é, pois, para ele a ilusão da consciência infeliz. Em La Nausée35 ele chega a afirmar que Deus não existe, porque o contingente do qual temos experiência, se bata sem o concurso de um Ser necessário.

Sartre parte de um apriorismo que infirma, na base, toda sua argumentação. Para ele Deus não pode ser ao mesmo tempo um ser-em-si e um ser-para-si. Esta declaração, porém, decorre de uma incompatibilidade estabelecida gratuitamente pelo filósofo entre noções que são complementares e não contraditórias. Esta é a falácia sartreana sumamente nefasta. Indaga-se, então: por que um ser-para-si não pode existir em-si? Como repara Etcheverry, “consciência diz afirmação de si, plenitude, riqueza. Apenas J. P. Sartre a reduz a uma desintegração...”36 Além disto, há uma consideração de Lotz que evidencia algo que escapou a Sartre: “a Consciência Absoluta significa identidade pura, sem nenhuma não-identidade no próprio processo de conhecimento”37 No caso do homem, a consciência alardeia sim sua limitação, sua eventualidade, mas, se é certo que o ser racional criado não é nada por ele, é também fora de dúvida de que ele é alguma coisa nele mesmo, porque provém do poder divino que o sustenta no ser. Adite-se que, a se admitir que o em-si é incompatível com o nada, o que não ocorreria com o para-si, não há como não aceitar que as coisas materiais estejam numa colocação superior no que tange ao homem. Ora, isto é uma negação do espírito e uma paradoxal inversão metafísica. Além disto, se Deus não existe, tudo é permitido, porque não há valores previamente fixados, dado que não há uma consciência infinita que pudesse concebê-los e impô-los. A vida perde, de fato, o seu significado e cai na absurdeza, na náusea existencial, gerados pela dissertação sartreana. Sartre salientou: “... queremos dizer somente que Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas consequências”.38 De fato, delas é a nadificação e suas fatídicas implicações. Aliás, La Nausée provoca uma sinistra inquietude percuciente, a repugnância pela existência, fomentando insegurança, por causa do rompimento íntimo e da desagregação do ser humano. É que “o existencialismo se desdobra sob o signo do niilismo subjetivista, que faz do homem a medida de todas as coisas, de tudo, mesmo de Deus. Esse Deus, porém, revela-se mortal e finito; Ele é como diz Sartre o desejo de ser Deus que habita o homem. E quando a realidade humana se insurge como medida de tudo - o homem se instala no nada”.39

Em Deus estão os alicerces de uma ética que não constrange o homem, mas lhe indica uma senda para a realização do que ele é interiormente. Emanados de uma Sabedoria eterna, os preceitos morais ajudam a liberdade humana, muitas vezes condicionada por uma gama de fatores que tendem a reduzi-la, impedindo os empenhos meritórios do homem para a participação nas riquezas d’Aquele que é.

Ateísmo Axiológico
As insuficiências e imperfeições intelectuais e vivenciais dos crentes servem de pretexto aos que renegam o cristianismo em função do valor. A crença em Deus, segundo alguns, não exige assaz dos homens e não lhes propõe um alvo bastante elevado. Friedrich Nietzsche e Albert Camus são duas figuras típicas deste ateísmo.

Nietzsche
Nietzche despertou para a filosofia através de Schopenhauer. O ateísmo deste o fascinou. Assim se exprimiu sobre este autor: “Schopenhauer foi, como filósofo, o primeiro ateísta confesso e inflexível que nós alemães tivemos”.40 Na linha de Schopenhauer escreveu: “Que nos importa em nossos dias Deus, a crença em Deus? Deus não é hoje senão uma palavra sem sentido, nem mesmo um conceito”.41 Como quase todos os ateus depois de Feuerbach, Nietzche também considera a religiosidade como inconsciente projeção. Deus não é senão uma ilusão do homem inquirindo uma compensação de sua miséria. Sonho mau que leva a um escape fora do mundo e das magnas tarefas humanas. O homem, em certos estados fortes e excepcionais tomaria conta da energia que está nele adormecida, ou do amor que o sustém. Não ousando atribuir a si mesmo este poder e esta dileção, faria disto os caracteres peculiares de um ser sobre-humano, que seria outro diferente dele. Ele repartiria, assim, entre duas esferas os dois ângulos de sua natureza. O lado ordinário, lamentável e fraco pertenceria ao que se intitula “homem”; a faceta rara, potente e surpreendente seria o apanágio da outra, do que se denomina Deus. Deste modo, o homem se veria espoliado por ele mesmo de tudo que há de excelente nele. De fato, a religião, a crença em Deus, seria um processo de aviltamento do homem. Deus é uma ficção, atraindo para o absoluto nossas tendências mais recrescentes, nossas aspirações mais altas, nossos desejos mais ardentes. O melhor de nossa essência se destaca de nós e se cristaliza num fantasma misterioso que parece nos dominar e merecer nossas homenagens. Nós o veneramos como uma entidade sagrada. Deus se resume nos atributos essenciais do homem. É uma caricatura do real, uma quimera. O homem não é criado à imagem de Deus, mas Deus sim é feito à semelhança do homem. O cristianismo é para ele como a mais deletéria das seduções e dos embustes. Ele é a Grande-Mentira e a blasfêmia personificada. Deus é, pois, segundo Nietzsche, o sintoma, o índice desta doença mortal do espírito. O cristianismo é a máxima mistificação. O cristão é a “última ratio da mentira”.42 Declara-lhe então guerra em nome do valor. No que há de mais autenticamente evangélico é que a religião de Cristo aparece como nefanda ao filósofo que por isto a combate tenazmente. Os Evangelhos arrancam o homem a ele mesmo, à sociedade, ao universo. “Doutrina que faz da liberdade e da salvação da alma o fim da vida”.43 Reboca o homem para o céu fictício da divindade. Ele parte, pois, “em guerra contra a supremacia do simples de espírito, dos corações puros, dos perseguidos, dos frustrados”.44 Pergunta ele: “Quando e onde se viu um homem digno deste nome parecer com este ideal cristão?”45 A problemática do valor é mais fundamental que a da certeza. A religião desumaniza, degrada e infantiliza o homem. Lança-o no abandono, no desprezo.

Exerce-se um ensinamento que prega “a confiança, a candura, a simplicidade, o amor do próximo, a resignação, a submissão a Deus, uma espécie de desarmamento, de repúdio a si mesmo”.46 Daí preconiza que apagar a fé é a missão histórica de sua época, um encargo no qual todos os povos da Europa devem tomar parte. Eis suas palavras: “... o declínio da crença no Deus cristão, a vitória do ateísmo científico, é um acontecimento da Europa inteira, em que todas as raças deve ter sua parte de mérito e honra”.47 Isto “como uma vitória final, e duramente conquistada, da consciência européia, como o ato mais rico de conseqüências de uma disciplina de dois milênios para a verdade, que por fim se proíbe a mentira de acreditar em Deus.”48 O fato recente mais notável assinala em “A Gaia Ciência”, é que “Deus está morto”, que a crença no Deus cristão caiu em descrédito - já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa ... “De fato, nós filósofos e “espíritos livres” sentimo-nos, à notícia de que “o velho Deus está morto”, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora...”49 Coloca nos lábios de Zaratustra esta frase: “O vosso Deus jorrou sangue sob o meu punhal... Deus está morto, agora nós queremos que o super-homem viva”.50 Pedir uma graça extraterrena é voltar sua atenção para um ídolo estrangeiro. Espoliação perniciosa do indivíduo, porque ela afasta seus olhares da terra para o além imaginário. Daí ser indispensável substituir os pretensos valores cristãos por novos, que longe de diminuir o homem o venham a exaltar.

O ateísmo não é para Nietzsche uma problematicidade especulativa mas uma afirmação essencial. Anunciar a morte de Deus é dar ao homem todas as chances de se engrandecer. O desaparecimento de Deus é correlato com o desabrochar do homem. É a via da libertação. Assim, ele sairá do abismo. “Deus está morto” não é um quimérico enunciado de um evento constatado, nem o lamento de uma alma angustiada, nem a ironia de um espírito perspicaz. É uma resolução tomada. Esta proclamação solene, repetida pelos seus epígonos, domina a obra de seus últimos anos. É a inspiração suprema que lhe anima todo seu pensar ao proclamar a morte de Deus. Significa propor profeticamente pelo menos aos eleitos que estão no mais alto cimo, a confiança de um triunfo sobre a morte. A morte de Deus é a morte da morte. Os dois principais temas positivos do pensamento, ou antes da visão nietzschiana, o super-homem - uebermensch - e o retorno eterno não têm cabimento, senão por esta ambição de encontrar no ateísmo integral uma religião de salvação total para a terra e para o homem. O retorno eterno é a eterna salvação; o super-homem é ao mesmo tempo o salvador e o homem salvo. Nietzsche anuncia o aparecimento do super-homem. É a humanidade nova. Ora, a seus olhos Deus é aquele que tem o homem em uma escravidão milenar e o impede de subir a nível mais elevado. “Maintenant, afirma ele, ce Dieu est mort! Hommes supérieurs, ce Dieu a été votre grand danger. Vous n’êtes ressuscités que depuis qu’il gît dans la tombe. Ce n’est que maintenant que revient le grand midi, maintenant I’homme supérieur devient maitre”.51 Torna-se profeta. É inevitável que decorram séculos, talvez milênios, antes que o vestígio de Deus desapareça completamente da caverna onde vegeta a maior parte dos homens. Esta perspectiva, porém, não desencoraja o filósofo alemão. O homem liberto para sempre das mitologias, de todas as superstições, será capaz de ser o demiurgo de seu próprio futuro. Nietzsche é, positivamente, um convícto deicida.

Camus
Camus é influente junto daqueles que tomaram contato com Sartre e não lhe aceitam o modo de expor suas idéias. Elaborou ele uma filosofia do absurdo. Em “Le Mythe de Sisyphe”52 nos fala do raciocínio absurdo, do homem absurdo, da criação absurda. O absurdo universal constitui para o homem um maldição humilhante, um trampolim para a revolta. O homem deve viver, porque há obrigação de se sublevar contra a existência absurda, de dizer NÃO por todos os atos de sua existência. A vida não é boa. Ela não tem sentido. Saída do nada, ela resolve-se em nada. Prometeu insurreto contra Júpter é o protótipo da postura humana. É para não se descartar desta insurreição que não se tem o direito ao suicídio. Repulsa de uma paixão violenta contra um fado cruel. Assim se pronuncia em L’homme revolté: “A revolta metafísica é o movimento pelo qual o homem se levanta contra sua condição e toda a criação”.53 O cosmos é um “imenso irracional”. O absurdo não é irreal. É interação diuturna entre o mundo e o homem. Para ele o absurdo nasce desse confronto entre o apelo e o silêncio insensato do mundo. Aconselha então que se agarre a isto porque toda a conseqüência de uma vida daí pode resultar. Flui da confrontação de dois termos: o apelo humano e o silêncio cósmico. Quereríamos compreender o que é essencialmente inteligível. O absurdo é um divórcio entre o amor do ser racional e a opacidade do universo; entre nosso anelo de unidade e a multiplicidade das coisas; entre nossa estima dos valores absolutos e a inanidade deste anseio. É a incoerência que encadeia um ao outro os dois membros destas antinomias: o espírito e o homem volorar-se para dar um sentido ao mundo. Daí Camus deduz que apenas há um valor absoluto: o Homem, o qual será sempre contestador. É é o irracional, o azar, tanatos. A morte dá o tom final a este tredo mundo no qual o homem está inserido. Constatamos o envelhecimento. O tempo nos é medido, contato. A palavra “amanhã” tem uma conotação revoltante. A morte transtorna tudo. A ventura eivada de absurdez é a situação humana. Existir é fazer viver o absurdo. O exemplar do homem é Sísifo, condenado a rolar uma pedra até ao cimo de uma montanha, donde ela torna imediatamente a cair. Labor inútil e sem gratificação, espelho fiel do que ocorre com o homem. Donde o protesto contra o sorte inexorável e intolerável. Daí sua inferência acerca de Deus, que para ele saiu da moda. É palavra sem significado.

Numerosos são os jovens de hoje que reconhecem na obra de Camus a manifestação de seu estado de espírito existencial. Há um círculo fechado de uma absurda imanência. A existência de Deus é uma tese que não se põe para eles, pois a não existência de Deus se lhe antolha de tal evidência que não procede demonstrá-la.

Concepções científicas antiteístas
Conflito entre Ciência e Religião é o leit motiv de uma série de manuais anti-religiosos divulgados por toda a parte. O campo preferido para tal difusão é o meio universitário. Por vezes, premidos por dificuldades econômicas, jovens menos avisados se fazem os propagandistas de tais livros. São arautos do erro e, o que é fundamentalmente terrível, disseminam o veneno da descrença. Por preços realmente módicos, Ambarcoumyan e Oparine, da Academia de Ciências de Moscou, circulam nas Universidades. Onde se deveriam formar os construtores de uma nação verdadeiramente humana, se contaminam aqueles que destruirão os pilares daqueles conceitos que fazem uma comunidade , de fato, equilibrada, porque embasada em Deus. Os citados autores soviéticos, homens inteligentes a serviço do mal, sabem dar um cunho de vulgarização altamente periculosa às suas idéias materialistas. A finalidade russa através do “programa científico-ateu” é ardilmente dinamizada. O que é mais grave: professores de Filosofia, de Biologia e de outras disciplinas, em nossa pátria, aconselhando o estudo de tais obras, particularmente as de Oparine54 Ao se investigar estes divulgadores do anticientificismo das concepções religiosas do Universo e do Homem, se pode verificar a primariedade da exposição, mas esta engana os incautos. Invoca-se a memória de Leucipo, Demócrito e Epicuro, líderes, destacados por eles, do materialismo na antigüidade. Recordam-se, preconceituosamente, os eventos ligados a Copérnico, Giordano Bruno e Galileu. A Igreja Católica, as Igrejas Ortodoxas, as diversas Confissões Cristãs surgidas após o século XVI, e até o Islamismo, são focalizados pelo Instituto de História e Teoria do Ateísmo da Universidade de Lomonosov, sediada em Moscou, como os maiores inimigos dos cientistas. Esquecem-se os marxistas das perseguições, estas sim, destituídas de todo o senso crítico, movidas aos sábios russos. Os que têm a dita de escapar da Sibéria estão aí no mundo democrático a denunciar os crimes contra quem ousa contraditar, de longe, o regime ateu. Em pleno século vinte, portanto, não na era da deturpada Inquisição, Stalin mandou fuzilar Voznesensky, porque suas preleções sobre economia pareciam contradizer pontos dogmáticos do “infalível” Marx. Vavilov, renomado biólogo, foi exilado por contestar o materialista Lysenko. Embora a proposição sobre a existência de Deus seja da alçada metafísica e não da jurisdição das ciências naturais, é bem que se analisem as cogitações mais válidas dos cultuadores da deusa Ciência. Esta “matou definitivamente a idéia do mito chamado Deus”. Eis uma frase de Ambarcoumyan positivamente irrisória, mas que impressiona os menos atentos: “... a astronomia fez uma conquista após outra e começou a banir Deus de todas as esferas do mundo material”.55 Para ele a astronomia veio ostentar que a terra é um corpo minúsculo, perdido no macrocosmo. Eles não entendem como Cristo, chamado Filho de Deus, poderia se interessar pelos insignificantes animais evoluídos, que se dizem racionais, e vir exatamente se encarnar neste minúsculo planeta na imensidão do espaço, para redimir criaturas tão pequeninas. Assim, Deus é uma imaginação pretensiosa do homem, fruto das crenças religiosas, as quais raiam como ridículas ante as conquistas científicas. O que tais autores desconhecem é o início da Bíblia, pois lá está claro que o homem, ser diminuto ante a grandeza do cosmos e perante a majestade divina, foi, porém, feito “à imagem e semelhança de Deus”.56 É um “microcosmo”, um pequeno mundo, que pela sua alma vale mais que milhões de corpos siderais. Embora participando das vicissitudes de tudo que é material, pode alçar vôos potentes ao Infinito. Tem uma dignidade que ultrapassa toda a amplitude do mundo visível. Quanto às asseverações de que este universo está em espansão, a matéria não se reparte de uma maneira igual em todas as direções, as galáxias não se formam simultaneamente e têm seu modo de formação contínua, como o das estrelas, sobre serem meras teorias e, portanto, suscetíveis de futuras revisões, há uma passagem bíblica que esclarece tudo, em qualquer hipótese: “os céus narram as maravilhas de Deus”.57 A metabase dos corifeus do erro é patente. O ato criador não está aprisionado pela opinião dos teólogos que, em área específica das Ciências, podem se equivocar, como, aliás, os mesmos cientistas, os quais, continuamente, estão revendo e modificando partes do patrimônio herdado do passado. Além destes enfoques astronômicos outro campo muito explorado pelos sovieticos é o da biologia. A teoria de Darwin é vista como a derrota suprema do criacionismo. O fisiólogo Setchenov tenta comprovar, aos desprevenidos contra seus sofismas, que “os atos psíquicos encontram sua origem nos processos materiais dos nervos que se estendem no cérebro”.58 Pavlov é taxativo: “conhecimentos científicos atualmente adquiridos relativos ao psiquismo humano apresentam uma prova sólida de um caráter natural e demonstram ao mesmo tempo a falsidade da tese religiosa de uma alma sobrenatural e imortal”.59 A lógica aristotélica, há muito, já ensinou que uma conclusão não pode ultrapassar as premissas. Querer reduzir o pensamento a uma segregação do cérebro, como o fígado expele a bílis, o aparelho digestivo o suco gástrico, os olhos as lágrimas, é agredir elementarmente o vigor mental do homem que tem capacidade de apreensão de idéias imateriais, com as quais forma juízos e com este raciocina. Isto não acontece com os brutos, destituídos da luz intelectiva. O efeito tem que ser proporcional à causa. Se o homem é apto para captar a qüididade das coisa, é porque ele possui um elemento imaterial capaz de conceituar. Ajunte-se que inúmeros são os autênticos cientistas, das mais diversas áreas, que deparam Deus através de suas pesquisas. A tragédia de muitos vem de que, possuindo em si o senso do divino, podendo ir além da observação da maravilhosa obra ao artífice poderoso, no caminhada para Ele, nem sempre, a liberdade é bem direcionada, a inteligência amplamente explorada. As névoas da paixão, a cortina espessa da insinceridade, a dureza do orgulho, os espinhos das preocupações, a falta da reflexão, o bloqueio dos preconceitos, geram,assim, óbices à passagem à transcendência, cortam o liame com o Criador, fecham os circuitos espirituais, derrubam as antenas que podem captar as harmonias que levam ao contato com Aquele que É. Há um retrocesso nas veredas inescrutáveis de Deus. É a resposta negativa aos sinais de sua inefável presença que Ele esmou mundo todo. Ao parar nas aparências, ou seja, naquilo que as coisas possuem de atrativo como pistas para alcançar além do que se vê, o homem forja uma terrificante dicotomia, pois, obcecado, não pode chegar Àquele que tudo fez. Dá-se uma anomalia que Siegmund descreveu como “estado de letargia por causa dos valores narcotizantes do mundo”.60 Como Deus sempre se manifestou, há um instante no qual qualquer homem, mesmo um cientista ateu, desperta. É embate doloroso. Supõe coragem para quebrar grilhões. Seja como for, Deus exige de cada homem um sim ou um não. Trato bilateral de fundas repercussões. Ação bipessoal entre Ele e o homem, se a resposta é uma adesão repleta de sublimes efeitos. A recusa a Ele, por entre as incongruências da vida, leva inevitavelmente ao fatalismo, à divinização do acaso ou ao determinismo. O destino substitui a providência. Instala-se o mais maléfico dos paradoxos: feito por Ele e para Ele, o ser humano agride uma ordem natural e vota as costas Àquele longe do qual jamais pode se realizar. Aceita-se o engodo dos protagonistas de uma pseudociência que desejam destronar Deus. Daí a desordem íntima e com ela uma desorientação que se extravasa em manifestações agressivas para consigo mesmo através de vícios os mais hediondos; para com a sociedade, arrasando toda herança cultural; para com a humanidade, endeusando o sensível, o passageiro, o acidental. De tudo emanam frustrações, atos de terrorismo, reações que denigrem. Mais do que nunca, votar-se para a sabedoria divina, é um imperativo inadiável. Aquele que não crê necessita energia para interpelar sem temores infantis, com objetividade, as teofanias que encontra a cada passo. Os que imergem seu entendimento em Deus, são os fautores de mensagem que posicionarão novamente o desarvorado homem deste final de século na atmosfera daquelas realidades que guiarão a História para dias menos turbulentos.

A Igreja e o ateísmo contemporâneo
A Igreja inquieta-se com o ateísmo contemporâneo.

Paulo VI, estabelecendo em abril de 1965 o Secretariado para os não-crentes, realizava concretamente uma das metas que ele mesmo tinha assinado em sua encíclica-programa, de 6 de agosto de 1964, “Ecclesiam suam”: estimular o diálogo não somente entre todos os homens indiferentes, ateus e não-crentes. Ele deu impulso a este Secretariado e conscientizou o orbe cristão de que o ateismo é uma preocupação pastoral. O papa impulsionou a instituição de Secretariados nacionais. Trata-se de conhecer através da vida, das produções nacionais, dos atos políticos, todas as formas segundo as quais maturam as convicções dos não-crentes. No dia 29 de março de 1967, ao comunicar aos bispos do mundo inteiro o programa dos cinco itens propostos ao Sínodo, formulava o papa, em primeiro lugar, este: “os perigos encontrados pela Fé e as diversas formas do ateísmo”. A Igreja está, portanto, ciente da gravidade do problema.

A visualização do mundo do ateísmo por parte dela no-la apresenta o documento conciliar “Gaudium et Spes”, que nos ensina ser o ateísmo no mundo moderno um sintoma hoje gravíssimo que deve ser submetido a exame diligente, pois são multidões, cada vez mais numerosas, que litigam contra a religião.61 É o mesmo papa Paulo VI que, em alocução de 29 de junho de 1963, se referia a isto, patenteando que, ao vislumbrar a humanidade, contempla-se o ateísmo perturbando o ordenamento das coisas no que tange à cultura da mente, aos costumes e à vida social, de maneira que a reta noção da ordem é deixada de lado. Quanto mais se torna clara a luminosidade que jorra das ciências das coisas, obscurece-se, infelizmente, a ciência de Deus. A tristeza, a solidão e o desespero vão deixando seqüelas. Tudo isto, no dizer do papa, caracteriza lassidão e senectude. É a ausência da fé na vida e no que a esta é um suporte, a saber: a certeza da existência de um Deus justo e bom.62

As causas do ateísmo são apontadas: incúria religiosa, errônea concepção de Deus; o materialismo, as mazelas hodiernas; a reação contra as religiões e, sobretudo, a cristã; a exaltação exagerada da técnica que incentiva o ateísmo. Entre as modalidades de ateísmo o Concílio na “Gaudium et Spes” aponta o agnosticismo; o humanismo; o relativismo; o ateísmo sistemático, que faz o homem único artífice de sua própria história. A posição da Igreja é claramente afirmada: rejeita firmemente o ateísmo. Doutrina que o acatamento de Deus não se opõe à dignidade do homem. Confia no seu anúncio salvífico, iluminador de uma sã escatologia e que não diminui a voloração das atividades profissionais. Concita aos ateus a se interessarem para reedificar o mundo e, por isto, a eles chama para um debate. Deplora a discriminação entre os crentes e não-crentes que alguns governantes introduzem injustamente. Prega a liberdade religiosa. Os remédios indicados são: mais clara exposição do ensinamento de Cristo, a fé ativa, a caridade fraterna. Julga que é irreconciliável o reconhecimento de Deus com a idéia do homem autônomo, fim para si, único construtor de sua história, o que é favorecido pela ambição de poder que a tecnologia confere ao homem.63

Conclusões
A coexistência é hoje pacífica entre crentes e ateus
É raro, com efeito, quer se feche a alguém uma porta, porque esta pessoa seja crente ou não. Homens das duas categorias labutam em conjunto, agem no seio dos mesmos grupos políticos, econômicos, esportivos e culturais. Acrescente-se que casamentos entre crentes e não-crentes se tornam freqüentes, apesar da comunicação espiritual entre uns e outros ser difícil. Crentes e descrentes já não se acusam de obscurantismo e não mais se insultam. Há, pois, uma tolerância, fruto do pluralismo do mundo em que se vive. O papa João XXIII na sua Encíclica Pacem in terris fez uma distinção que ficou famosa entre o que não é aceito pela Igreja, as teorias fixas e os movimentos que nelas se inspiram, mas que evoluem com a vida. Em seguida João XXIII dizia: “Na medida em que estes movimentos estão de acordo com os sãos princípios da razão e correspondem às justas aspirações da pessoa humana, quem recusaria reconhecer aí elementos positivos e dignos de aprovação? Pode acontecer, por conseguinte, que certos encontros no plano das realizações práticas que até hoje teriam parecido inoportunas ou estéreis, possam agora apresentar vantagens reais ou as prometer para o futuro”.64 Na Encíclica suam o papa Paulo VI também falou do diálogo com o ateísmo. Uma troca de idéias entre peritos e não entre grupos é o que surtirá efeito no que diz respeito a um intercâmbio cultural realmente de alto nível e com fins práticos. Num plano mais vasto a troca de opiniões entre o catolicismo e o marxismo é inconcebível por causa dos péssimos resultados para a atuação religiosa e civil.

O ateísmo hodierno é um ateísmo positivo e absoluto. Seus adeptos pretendem ser ateus não apenas em relação às crenças de uma religião, àquela do meio ao qual eles pertencem, mas radicalizam. Negam e combatem todos os deuses, reivindicam a autonomia do homem e do universo. Claude Bruaire expressou-se com precisão: “O humanismo, com efeito, não passa de um revestimento do absoluto sobre a idéia vazia do homem, libertado do sistema natural, tentativa monstruosa e irrisória de identificar o animal bípede com o informe absoluto do Sujeito indeterminado. Eis por que Deus fica um problema lancinante que atormenta o humanismo ateu”.65 Menosprezam qualquer fé como um indesejável entrave. Alguns admitem a razão como o critério supremo da verdade; outros endeusam a Ciência, sistematizam uma filosofia que eleva o homem e o emancipa do Deus vivo.

O ateísmo moderno se mostra, antes de tudo, anticristão
Tem, assim, traço comum com o ateísmo de outros tempos. É na religião cristã que os ateus em geral encontram o óbice à idéia que fazem do homem e de sua felicidade. Até Marx e Freud, embora de origem judaica, dirigem suas críticas sobre o papel sociológico da religião, não tanto contra o judaísmo, quanto contra o cristianismo. É que a encarnação do Verbo de Deus contradiz Hegel que falou de um Deus-coisa, o eterno Ausente, informe, impessoal. Heidegger sustenta que o Deus que Nietzsche anunciou absoleto é o Deus cristão, Deus pessoal com o qual se conversa. Além disto, a imortalidade, da qual a dissolução dos costumes é triste indicador, faz do cristianismo a derradeira resistência à irradiação atéia. Negando o cristianismo, não há razão para aderir a uma outra religião. Resta apenas esta opção: chegar à descrença total.

Há peculiaridades nos vários ateísmos contemporâneos
O ateísmo de Sartre e Nietzsche é arrogante e blasfemo; o de Albert camus, desesperado. Deus cientificamente inútil é a tese de Marx, Deus moralmente impossível, a dos existencialistas. Profético e lírico em Nietzsche, o ateísmo se entorpece com o marxismo de prosa materialista que é um ateísmo crasso. Se Sartre chega ao cinismo provocador, com Camus o ateísmo é, de fato, tétrico. Na negação de Deus, Sartre descobre uma emancipação humana total, sem bússola, sem estrela, enquanto os marxistas almejam uma humanidade, marchando com passo seguro para fins já inscritos na natureza e realizáveis por suas próprias forças. O ateísmo hegeliano-feuerbachiano não passa de um exercício de intelectuais sedentários, como o de Fichte. Em Marx se detecta uma agitação revolucionária.

A oposição marxismo-cristianismo é flagrante
Quando se estudam Marx, Engels e Lénine, se percebe que não resistem à análise filosófica mais profunda. Aspecto, porém, a ser lembrado é que o ateísmo está no âmago do sistema deles. Isto exige, então, certa perspicácia para se verificar que, de fato, é inseparável a teoria marxista e a negação de Deus. O ateísmo é-lhe, assim, intrínseco. Daí o grande antagonismo entre este sistema e o cristianismo. Admira-se o titânico esforço intelectual dos fautores deste tipo de ateísmo para recusar a transcendência. Aceita a premissa de Feuerbach, no qual se apoiam, como se mostrou, os ateus subseqüêntes, de que a idéia de Deus não é outra coisa que uma alienação e transformada a religião numa ilusão patológica, violenta-se a lógica para não se admitir um Criador. Dá-se uma mutilação intelectual. Baseada então numa contestável alternativa feuerbachiana, a doutrina marxista vai buscar em Hegel uma noção que se torna basilar a todo o sistema: o materialismo dialético. Dialética para Marx, como no pensamento hegeliano, é “um processo de afirmação de si no caminho da alienação de si, seguido da supressão desta alienação”.66 Marx, deixando de lado a esfera da consciência, subjacente na idéia hegeliana, diz ser este processo de autocriação do homem como um substrato da natureza, isto é, o homem faz parte desta integrante. Está, deste modo, identificando o naturalismo e o humanismo. Eis aí algo a ser inicialmente discutido: o pensar e o espírito reduzidos a produtos da natureza. É onde entrou Engels, o qual transfere para atividade cerebral o papel da alma, que, para ele, aprioristicamente, não existe. A representação de Deus passa a ser personificação das forças inexploradas da natureza. A consciência é para ele um coletivo que designa as operações psíquicas. Pergunta-se então: como compreender que a matéria possa gerar atos em si não materiais como o pensamento, a volição? A resposta marxista é que há um deslocamento intrínseco à matéria, o qual levaria à passagem da qualidade à qualidade, numa evolução ascendente espontânea. Eis a tentativa suprema para não se admitir o espírito. Fica a contradição patente: uma causa produzindo algo essencialmente diferente de si, ou seja, a matéria organizando-se até os fenômenos de ordem especificamente diversa, como o conhecimento, o querer. Outro pilar do dogma marxista é o materialismo histórico. A alienação do homem no setor social está figurada pelo Estado, seguimento de uma tradição religiosa que, diz Marx, torna o real concreto uma ilusão. Donde a alienação social do homem que vive em função de um trabalho alienado. Daí a interpretação que ele forja: “o modo de produção da vida material determina o processo da vida social, política e espiritual, em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência”.67 O remate evidente é que, mudado o modo de produção tudo se modifica e a religião, que não é para Marx senão um “suspiro da criatura oprimida, da alma de um mundo sem coração”, um deixará de existir. Aí o cerne do materialismo histórico. Eis a seqüência da História na ótica marxista: houve uma sociedade primitiva sem classes, depois a sociedade escravagista, a feudal, a capitalista e, finalmente, a nova sociedade sem classes antagônicas, socialista e comunista. Nesta visão da História, a religião não passa de um epifenômeno acessório do evoluir histórico básico que é a produção. A religiosidade é arrolada numa das formas da “falsa consciência”, ou de “um reflexo fantástico”, isto é, que mascara a realitat. Como pondera Michel Lelong, “depois de Hegel, não há um só ateu moderno que não tenha retomado - ao menos implicitamente - as doutrinas hegelianas do “senhor ele a transcendência e o mistério fazem de Deus o usurpador do homem e, desde então, entre Deus e o homem emerge o triste relacionamento do senhor e do escravo. É uma superestrutura superada no presente estágio. Eis porque, assim eliminada a religião pelo materialismo histórico, o materialismo dialético se incumbe de preencher o vácuo com um novo conteúdo ateu, ensinando que a matéria é eterna e dotada das forças acima mencionadas. É despontar uma solução ilógica que destrói, evidentemente, todos os valores, os quais só existem numa perspectiva transcendental. O grande drama, porém, é que os pontos-de-vista marxistas têm sido assimilados, consciente ou inconscientemente, por muitos que deveriam dar à sociedade o seu legítimo rumo, mas cuja metodologia educacional, ou hermenêutica histórica, ou conteúdo programático de telenovelas e filmes, de artigos e programas radiofônicos, estão impregnados de materialismo. São os que possuem uma mentalidade marxista e ainda ajuízam estar prestando um benefício. Mensagens que evolam do mundo fechado de uma imanência que desnatura, eis uma das coordenadas dos muitos paradoxos atuais. Uma civilização que se diz humanista, mas que embrutece o homem, infelicitando-o cada vez mais, porque o apartando sempre das realidades supra-sensíveis, as quais, unicamente, o podem beatificar e engrandecer. O que, porém, é ainda mais doloroso o afastando do Ser Supremo, longe do Qual só podem eclodir inquietações e balbúrdia.

O antiteísmo militante fragmentista não tem possibilidade de permanecer incógnito. A negação de Deus é patrocinada, em nosso século, de maneira tão sistemática e com tais meios científicos que exige uma atitude coerente e filosoficamente firme por parte dos que acreditam num Criador do universo. Não que ele careça, é claro, de defensores, mas pelas funestíssimas resultâncias que o antiteísmo organizado ocasiona para o homem, ao instalar um lamentável vazio antropológico e cosmológico. A cosmovisão atéia e suas implicações é que merecem ser dissecadas e exigem dos que têm a dita ímpar de crer, um agir conseqüente, objetivando a preservação do equilíbrio moral e também propiciando a outros esta felicidade. Não basta, então, essa certeza de que o ser racional ao empregar sua potencialidade intelectiva pode chegar ao Ser Supremo, nem é suficiente comprovar o dom da fé, recebido por muitos que se denotam receptivos a uma moção divina. Haverá sempre os que admitem Deus, mas inúmeros são aqueles que, além de não O aceitarem, pelejam sistematicamente contra qualquer inclinação religiosa. Muitos transformam-se em descrentes por lhes faltar embasamento para refutar o posicionamento ateu. O ateísmo montou uma estrutura dinâmica, complexo agressivo que visa, erroneamente, com a eliminação de Deus, instalar uma sociedade na qual, quem vier a nascer no novo contexto, se realize plenamente, porque liberto de uma ficção que infantiliza o homem. Quem aceita Deus, logo, repele esta colocação antropológica e, imediatamente, apela para a proposição oposta. De fato, a morte de Deus é o fim do homem, pois, irreversivelmente, todos os valores desaparecem. Cumpre, porém, ir mais além e indagar: em que se baseiam os sem fé para assegurar que Deus não existe? Questão tanto mais cabível quando se sabe que não apenas nos países comunistas, mas ainda no mundo ocidental, inclusive no Brasil, há, aberta ou sub-repticiamente, toda uma engrenagem ardilmente dinamizada para fazer medrar a semente atéia. Nos Institutos europeus de ateísmo científico se forja toda uma estratégia que vai levando de roldão os desprevenidos. O conteúdo de propaganda com acuidade e refinada arte, é planejado numa abrangência que vai desde papers preparados por experts argutos para enciclopédias, livros especializados, programas culturais, até à difusão sublimar nos meios de comunicação que, imperceptivelmente, instauram o ateísmo formando um modus vivendi, imbuído de materialidade. Sofismas são maldosamente arquitetados e apenas o bom senso não basta para os afastar. Politzer, marxista militante, professor de filosofia, escreveu o livro Princípios Elementares da Filosofia, o qual seu seguidor Maurice le Gross ampliou e publicou com o título de Princípios Fundamentais de Filosofia. É uma lídima cartilha do materialismo, a qual objetiva “facilitar o acesso às fontes, encorajar o leitor pelas freqüentes lembranças, a se familiarizar com obras de Marx, Engels, Lénine, Stalin, Mao Tse Tung e Maurice Thorez”.70 Esta obra, na qual Stalin e Lénine são avaliados como os maiores filósofos do nosso tempo, está traduzida em português e, amplamente, difundida nas Universidades. Eis um pequeno trecho no qual há um dilema sofístico para ridicularizar o senso religioso: “Quando o raio ameaça cair, pode-se tentar afastá-lo de duas maneiras: utilizando um pára-raios ou acendendo velas para implorar a misericórdia do céu”.71 Em seguida, vem um comentário sobre a reação sábia dos que se fiam nos conhecimentos científicos e a ingenuidade dos que temem a cólera e a onipotência divinas! Eis o tipo da mordacidade, simplista e estreita; ingênua e medíocre. É axiomático que faltou, no mínimo, ao autor um pouco de tino, pois nas torres das Igrejas há pára-raios. Ao lado deste comportamento satírico, observa-se, também, o empenho em se rebater de uma forma menos idiota as provas filosóficas da existência de Deus, particularmente as cinco vias expostas por Santo Tomás de Aquino. O ponto de partida dos ateus é que o mundo se justifica por ele mesmo, sem precisão de um Ser dele distinto. Partem, a priori, da não possibilidade ôntica e cosmológica de um ato criador, por contrariar este a metabléia expontânea dos seres. Eis por que não acolhem uma Causa primeira, um Ser do qual origine o movimento, um Ser necessário que embase a contingência, um Ser perfeito do qual as outras perfeições são participações, um Ser inteligente que ordenou tudo que existe. Entretanto, os dizeres da Enciclopédia Filosófica Soviética, de autores de livros como Bychovsky e Noskov, não convencem. Dogmatizam que a transformação da matéria é eterna, inerente à mesma; o mundo é infinito no espaço e no tempo; a necessidade e o ocaso não se excluem e são duas faces da realidade ligadas entre si; das perfeições existentes não se poderia logicamente deduzir uma prova ontológica; a ordenação que há decorre das leis naturais insuperáveis da matéria em si. erros crassos da escola atéia e afronta à estrutura lógica da razão humana. Esta não pode, nunca, admitir o absurdo. A matéria que se metamorfoseia continuamente está, assim, sigilada pela finitude, isto é, ela não possui em si a base de sua existência. Logo, a recebe de outro fator. Uma regressão é inconcebível, porque é estabelecer justificativa internamente privada de fundamento, um contra-senso que repugna à inteligência. Portanto, deve haver um Ser que encerra em si o porquê de si, que existe por existência substancial, na linguagem de Santo Tomás, um Ens a se. Em obras atéias encontram-se indagações pueris, como esta de Kryvelev: “Quem criou Deus?” O diagnóstico sapiente do mundo que aí está, mostra que contingência e existência, por exigência interior, são antípodas irreconciliáveis. É paradoxal imputá-los concomitantemente ao mesmo sujeito.

É bem mais fácil fazer um ato de fé em Deus, do Qual fala a Bíblia com tanta clareza, mas, diante das impertinências dos ateus, é importante averiguar até onde há uma inovação plausível, que prove a não existência de um Arquiteto do universo. Pode ser até uma propedêutica para o descrente a refutação das asseverações inverídicas e, para quem acredita, é um escudo e confirmação de sua crença.

O ateísmo nietzschiano envolveu preconceituosamente o cristianismo
Eis alguns pontos que explanam a fragilidade da crítica do filósofo de Röcken. São facetas não isoladas do contexto de seu pensamento, mas que constituem leit motiv de suas divagações filosóficas.

Para Nietzsche “denomina-se o cristianismo a religião da compaixão”.73 Ora, eis aí um engano que vai contra o cerne mesmo da pregação de Cristo e a História. Com efeito, o núcleo do Evangelho é o amor. O mandamento novo, a novidade que Jesus de Nazaré inseriu na contextura das instituições foi: “Assim como eu vos amei, amai-vos uns aos outros”.74 Ora, nada mais forte do que o amor. A compaixão que, no dizer de Nietzsche, “está em oposição ás emoções tônicas, que elevam a energia do sentimento vital, tem efeito depressivo”.75 Ora, sobre tal disposição tão negativa, não se constrói nada perene, durável. Entretanto, negar as realizações do cristianismo através dos séculos, seria obliterar fatos óbvios que honram, aliás, os foros culturais de inúmeros povos e muitas regiões.

Nietzsche com sua obsessão da idéia fixa da fraqueza, de pusilanimidade, deturpa a figura de Cristo e O apresenta como o símbolo do abatimento humano. Em O Eterno Retorno assim se pronuncia: “o deus na cruz é uma maldição sobre a vida...”76 Aí outro grande desacerto de Nietzsche. O Calvário foi episódico. Cristo foi, na verdade, reduzido ao homem da dor. Foi crucificado, morto, sepultado, mas, final glorioso: Ele ressuscitou. Ele venceu a morte. A ressurreição de Jesus, porém, para este filósofo é uma mistificação de Paulo, o “disangelista”77, o portador da má notícia, diz ele. Ora, quem se baseia “na mentira do Jesus “ressuscitado”78 não pode captar a essencialidade do cristianismo. A ressurreição resiste aos julgamentos mais severos. Não foi apenas Paulo de Tarso quem creu neste faustoso evento. O túmulo vazio e o Mestre que esteve com seus apóstolos e com eles conversou; a crença viva nesta verdade por parte de uma igreja nascente ante à hostilidade, à violência dos inimigos, é um acontecimento inegável. Não era uma homenagem piedosa tributada a um morto que se venerava e se amava, não era um culto respeitoso devotado a um falecido que se estimava, era, sim, fé inabalável em um ente vivo e bem amado.

Ora, se Cristo ressuscitou e a História, que é ciência, comprova isto, outra assertiva de Nietzsche, além disto, se esboroa: “o cristianismo promete tudo e não cumpre nada”.79 São Paulo, mil oitocentos e trinta e seis anos antes, já respondera a este desplante: “se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé, é inútil a nossa crença...”80 A recíproca é verdadeira. Se Ele ressuscitou, porém, estão definitiva e essencialmente certos os que aderem ao Evangelho que tudo promete e tudo cumpre. Deus não é “deus dos fisiologicamente regredidos, dos fracos”81, como deduz tendenciosamente Nietzsche, nem o “cristão, essa última ratio da mentira”82, como mordazmente declarou.

Neste caso “Deus”, “verdade”, “luz”, “espírito”, “sabedoria”, “vida” que Nietzsche acha serem uma delimitação do mundo e termos vazios, são realidades mais reais que as coisas que vemos, porque reveladas pelo próprio Deus. Aí se está num outro mundo, mas que é desvelado pela fé religiosa, a qual, longe de levantar fronteiras, faz entrever horizontes infindos. O objeto formal quo da fé é a luz da revelação, embora a própria filosofia, com a luz da razão, possa também ir além das barreiras do sensível, desde que não se esteja enclausurado na materialidade, como aconteceu com o filósofo em pauta. É claro que o ato de fé é muito superior ao da razão que atinge valores supra-sensíveis, mas estes só são acessíveis à inteligência de quem não está aprisionado em prejuízos, alienações patológicas ou se deixa envolver por distorções, filhos de uma focagem parcial.

Todas estas considerações mostram como se deve urgir o senso crítico e uma gnose alicerçada para não se deixar levar pelos artifícios raciocínios daqueles que fazem da descrença o ponto de apoio de suas declarações, sobretudo no que tange a filósofos como Nietzsche que, apesar do absurdo de suas idéias, tem certa “técnica de pensamento, como propedêutica à superação de condições individuais”.83 A leitura de Nietzsche leva, além do mais, a outra conclusão. Sem o conhecimento amplo e profundo da História é sempre perigoso fazer certas colocações.84

Acrescente-se que, uma apologia de Nietzsche, como se tentou ultimamente, baseada num novo comentário de seus escritos, não tem procedência, dado que seu ponto de partida é contestável e ele nega frontalmente as realidades metafísicas.

Um fenômeno a ser analisado é a descrença dos crentes
Metade da população da França, Itália, Alemanha e de outros povos ocidentais, crê mais ou menos firmemente, que o universo e nós mesmos adviemos do ato criador de Deus bíblico. Acatam a Trindade, a Encarnação do Filho de Deus, a Redenção pela cruz e a Ressurreição e confiam na salvação da alma. Esta adesão, porém, intelectual ou teológica está longe de ser a fé apregoada por Cristo, por São Paulo e por todo o legado cristão. São ateus práticos, pois negam a Deus pelo teor de vida.

Não há, positivamente, uma aceitação viva e conseqüente na Vida Eterna. Muitos, levados pela supersticiosidade, esperam milagres e se apegam ao maravilhoso. Outros querem da fé tão só um arrimo e das preces vantagens materiais. A idéia de Deus e, portanto, da religião, nas elites cristãs do ocidente está deformada: é epidérmica e não satura inteiramente o pensar e o agir. Em todas as épocas houve incréus imbuídos de alguma teoria. Hoje, porém, Deus é negado por ser supérfluo, porque o homem o reputa desnecessário. Há uma atmosfera atéia que envolve a cultura, a conduta do homem neste final de milênio. Mundo vazio de todo apelo a Deus. Ao lado disto, porém, o reverso da medalha é uma realidade. Apesar deste esvaziamento em muitos setores e do preconício do ateísmo pela imprensa que através dos romances, do cinema, do rádio, da televisão, ou mesmo em agremiações estudantis e operárias, é bom fixar que imensa é a multidão dos que professam sinceramente a fé em Deus. Há uma surpreendente renovação no mundo, um reviver do fato religioso, uma nova amplitude da espiritualidade. Michel Lelong disse que “se o ateísmo constitui, sem sombra de dúvida, uma das realidades da nossa época, a fé em Deus, proclamada e vivida sob formas muito diversas, é igualmente um fato que todo observador imparcial da sociedade contemporânea deve gravar”.85 As estatísticas estadeiam que na Europa, nas Américas, nos países afro-asiáticos centenas de milhões de homens e mulheres hoje são crentes.

Os ateus formam correntes múltiplas e complexas
Tentar apreender o ateísmo de um momento para outro é irrisório. O ateísmo é um universo ideológico muito diferenciado. A secularização também merece destaque. Há uma longa marcha para os cristãos neste estudo a ser feito. A pesquisa está em fase incipiente. Além disto, o grosso dos incrédulos é composto de indiferentes e agnósticos que não são propriamente contra a religião, mas eles caminham rapidamente desta neutralidade para um ateísmo concreto, afirmado. Ao lado desta grande massa há minorias muito ativas, ateus como tais, homens e mulheres que, têm uma dinâmica de vida fora de Deus. Uns são “ateus tranqüilos”, “homens tranqüilos”. Executam sua missão de homem com lucidez, friamente, sem agonia, nem preocupação; novos estóicos difíceis de serem abordados. Não cuidam de Deus, que fica menosprezado. Outros são os “ateus místicos”. Não querem nem ateísmo, nem deísmo; eles foram decepcionados e instala-se neles a revolta contra o Deus das religiões, Deus de religiosidade e de superstições, que não é, nem pode ser Aquele que dignifica o homem; não sabem o que seria o Deus que eles desejam ardentemente. Eles chegam então a se desesperar de O encontrar e concluem que não existe. Muitos, porém, vivem tragicamente.

A idolatria da ciência é um agente provocador da descrença
O ateísmo contemporâneo provém, por vezes, de uma admiração exclusiva das ciências exatas e seus métodos. Alguns desdenham outros conhecimentos, sobretudo a reflexão filosófica e a crença religiosa, vistas como reação subjetiva, quando não pueril. O sucesso tecnológico, por seu turno, os inclina a não valorizar senão a sabedoria humana. Daí nasce um clima novo e positivista, que se alicerça em incorreções e mal-entendidos graves. Deus por uma “mística” da humanidade. Seus adeptos perquirem uma ordem social renovada, chancelada pelo domínio do homem no mundo que ele mesmo fabricou, cuja marcha ele teleguia e que ele utiliza para seus próprios fins.

Há casos de ateísmo que a psicanálise sanaria
Mesmo uma análise perfunctória do ateísmo atual faz aflorar o liame entre o ateísmo e os desajustes psíquicos do indivíduo. É, sem dúvida, uma manifestação patológica que, eventualmente, ocorre com quem crê em Deus, mas que é, de fato, um sintoma clínico, que não deve ser depreciado. Por motivos inconscientes há ateus que pugnam contra seu afã de crer. A cura da neurose leva à conversão religiosa. Isto vai contra o freudismo que olha a descrença como único estado da consciência normal no homem, psiquicamente equilibrado, e vê em toda fé religiosa uma alucinação neurótica. Há de se alegar, por outra, que muitos deixam de crer levados por vícios. Estes também são vítimas da atrofia de suas mais íntimas disposições e a custo lograr-se-ão eximir-se de toda a culpa. Esta, aliás, pode até ser clinicamente diagnosticada.

O ateísmo contemporâneo é um apelo aos cristãos
Muitas vezes, de fato, o ateísmo não é repulsa ao autêntico Deus, mas sim de uma deturpada imagem d’Ele.

Além disto, convida o ateísmo contemporâneo aos crentes a tomar mais a sério o Evangelho e as exigências dele. Se eles traem a mensagem evangélica, apesar de trazerem o epíteto de cristãos, estão matando Deus nos corações dos homens. Conforme Pe. Fernando Bastos de Ávila, “o ateísmo como fenômeno social e de amplitude tão universal apresenta-se como fato de enorme gravidade e originalidade, que exige de nós todos uma corajosa revisão de nossas atitudes espirituais mais profundas e do nosso agir como cristãos”.86 Há como que nele uma virtude purificante.

O ateísmo como negação de Deus é tipicamente ocidental
É corolário do racionalismo, que penetrou nas províncias intelectuais européias e naqueles países mais diretamente ligados à civilização de Velho Mundo. O culto exagerado da razão e a rejeição da revelação, propiciam a descrença. O racionalismo, opondo-se ao fideísmo, intentou interpretar com a ajuda das luzes naturais os dogmas, as afirmações que anunciam todas as religiões. Decorreu do humanismo da renascença que opôs o individualismo à comunidade da Idade Média, o senso pagão ao espírito cristão.

O ateísmo contemporâneo tem uma característica postulatória
É mais uma opção moral do que dedução do raciocínio ou de ponto de chegada de uma crítica dos ditos religiosos. Eis a causa da falta de interesse para com as provas da existência de Deus. Trata-se de escolha moral, de orientação fundamental de vida, não significa um ato irracional, uma decisão arbitrária. É fruto da oposição entre valores religiosos transcendentes e humanos.

É trágico o consectário da negação de Deus
Recusar Deus é abalar todo o alicerce da mortalidade. Sem a fé em Deus fica a descoberto o único e insubstituível sustentáculo daquela estabilidade e tranqüilidade, daquela disposição externa e interna, privada e pública, a qual pode salvaguardar a prosperidade do Estado. Deus é a fonte de garantia dos bens, porque Ele é a realização infinita. Tomar consciência disto é atingi-lo implicitamente. Proclamar a morte de Deus é introduzir a tragédia no pensamento e na existência. A fé e a fidelidade imutável para com Deus fundamenta a esperança dos heróis cristãos, a qual não confunde. A morte de Deus é a morte do homem. É triste um mundo vazio de Deus. Verificou-se que faliu a afirmativa registrada por Lelong: “ontem construíam-se catedrais para glorificar a Deus; hoje erguem-se fábricas para melhorar a sorte dos homens”.87 É que sem Deus os homens se fizeram escravos das máquinas.

Não há originalidade no ateísmo contemporâneo
Não se encontra nele uma novidade, como se a humanidade ou alguns pioneiros de sua crença tivessem achado, graças a um aprofundamento da ciência ou a um progresso decisivo da moral que Deus não existe, que é um mito de uma consciência mal esclarecida ou adormecida e como se os modernos dispusessem, enfim, de comprovações definitivas e irrefutáveis da inexistência de Deus diante das quais as velhas teologias e as apologéticas tradicionais se encontrassem desarmadas. O ateu nega a Deus, O combate, mas continua avaliando os seres e a moralidade como se O admitisse. É que, como nota Boyer, “com um ateísmo explícito pode andar unido um reconhecimento implícito de Deus, porque a mente humana, avisada pela beleza do mundo exterior e mais ainda conduzida pela evidência da lei moral natural, concebe e proclama a existência de alguma realidade superior às coisas finitas, não sempre designadas pelo nome de Deus, mas confusamente advertida sob nome de Ideal, do Dever, do Direito, da História”.88

Ante os argumentos dos ateus hodiernos, por sua falta de razão e de certeza, permanece a conclusão da filosofia perene e da teologia sagrada.

Existe Deus, Ser Supremo, transcendente e pessoal, de quem dependem, na existência e na atividade, os seres todos do universo. Ele governa o mundo e rege os destinos dos homens.

Entretanto, “se o homem é a única criatura capaz de negar a Deus, pois todos os seres racionais são isentos do mal e da dúvida e vivem em Deus sem o saber e afirmando Sua existência pelo simples fato de viverem...”89, esta possibilidade é, exatamente, a sua mais triste sina.

Um comentário:

Mariana Noronha disse...

gostaria d agradecer pelo excelente texto postado.
eu e um grupoo de amigas conseguimos montar um trabalho sobre o ateismo somente atraves do seu blog.
fazmos faculdade de comunicaçao social e seu texto foi de extrema importancia para nós. parabéns e obrigada!